“O Capitão Bandeira Contra o Dr. Moura Brasil”, dirigido por Antônio Calmon em 1971, é um daqueles filmes que parecem existir entre o sonho e o delírio, entre o que se entende e o que apenas se sente. Uma obra que nasce sob o peso da ditadura militar e respira o desejo urgente de liberdade — estética, política e mental.
Cláudio Bandeira, vivido por Cláudio Marzo, é um homem aparentemente bem-sucedido, mas que se vê invadido por pesadelos e por uma figura sombria: o Dr. Moura Brasil. Esse duplo, meio símbolo, meio fantasma, atravessa sua consciência até dissolver a fronteira entre realidade e imaginação. Ao lado dele, surgem presenças que parecem mais arquétipos do que personagens — Norma Bengell como a Mensageira, Dina Sfat e Hugo Carvana — compondo um mosaico de vozes internas, espelhos e inquietações.
O filme não se explica: ele se fragmenta. As cenas se alternam em preto e branco e em cores, como se a sanidade e o delírio disputassem o domínio da narrativa. Essa estrutura quebrada, que por vezes beira o caos, não é defeito, mas método: Calmon transforma o próprio desequilíbrio em linguagem. É o cinema marginal experimentando o inconsciente, em plena época em que a liberdade criativa era vigiada.
Há algo profundamente simbólico em ver um executivo atormentado perder o controle de sua mente em 1971 — como se Bandeira fosse o retrato do Brasil da época: racional por fora, adoecido por dentro. O Dr. Moura Brasil, seu antagonista, encarna o autoritarismo invisível, a voz interior que reprime, que exige conformidade, que enlouquece pela ordem.
A estética é ousada. O filme mistura o onírico e o político, o grotesco e o poético. Há ecos de Fellini, do Cinema Novo e de Glauber Rocha, mas também uma pulsação pessoal que torna o filme singular. Calmon não tenta imitar ninguém: ele inaugura um modo próprio de filmar o delírio, de transformar o inconsciente em narrativa.
Nem tudo funciona. A fragmentação por vezes dispersa o ritmo; algumas cenas parecem testes de linguagem mais do que trechos de um mesmo corpo. Mas mesmo nessas falhas há força: o risco faz parte da experiência. O Capitão Bandeira Contra o Dr. Moura Brasil é, antes de tudo, um filme que ousa — e essa ousadia o mantém vivo.
Mais de cinquenta anos depois, a obra volta à superfície restaurada em 4K, e isso não é apenas um resgate técnico, mas simbólico: o delírio que antes parecia datado agora ressoa com nova atualidade. Num mundo novamente tomado por sombras políticas e psíquicas, o colapso de Bandeira soa como um aviso — ou um espelho.
“O Capitão Bandeira Contra o Dr. Moura Brasil” é um mergulho no inconsciente de um homem e de um país. Um filme que não se encaixa, não se explica e, por isso mesmo, permanece.
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