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A Pele: o retrato imaginário de Diane Arbus




O grotesco fascinante através do olhar de Diane Arbus


O filme A Pele: o retrato imaginário de Diane Arbus (Fur: An Imaginary Portrait of Diane Arbus, 2006) é inspirado em uma das mais importantes fotógrafas norte-americanas, Diane Arbus, sensível ao incomum, que enxergava o belo no feio, se seduzia pelo diferente, pela multiplicidade das pessoas, “para quem a vida se faz, oscila e se transforma naturalmente em sua variabilidade” (Cibelle Jovem Leal e Ivone Agra Brandão, p.2).

O longa-metragem se passa na década de 1950, mais precisamente no ano de 1958, em Nova York, onde Diane é assistente do seu marido, o fotógrafo Allan Arbus. Esposa dedicada e mãe de duas filhas, Diane direciona toda sua atenção ao esposo e, principalmente à família; uma mulher comum como as demais de sua época, “a não ser por um detalhe: o gosto pelo excêntrico, sentimento que ficou por muito tempo enrustido por ela possuir uma educação rígida por parte de sua mãe, que era autoritária e impulsiva e tentava limitar suas sensações de surpresa que movimentava o olhar sobre o diferente” (Leal e Brandão, p.2).

Devido ao seu fascínio pelo misterioso e peculiar, é atraída por seu novo vizinho, o misterioso Lionel, homem que carrega uma doença em sua pele denominada hipertricose, caracterizada pelo crescimento excessivo de pelos, tornando-se uma segunda pele, transformando-o em uma aberração perante a sociedade.



De acordo com Cibelle Jovem Leal e Ivone Agra Brandão em seu artigo Vivendo a diferença e experimentando a existência: O imagético e misterioso mundo de Diane Arbus no filme A Pele

“Esse homem chamado Lionel irá mudar totalmente a rotina da fotógrafa, quando ela investe em sua carreira profissional começando seus passos para o que irá marcar a sua vida e o mundo. Lionel, diferente do que muitos pensam, não significa apenas um amante para Diane, ele é a chave na travessia para um mundo encantado e maravilhoso com o qual ela sempre sonhou conhecer, viver, experimentar e sentir” (Leal e Brandão, p.2).

Este personagem é uma metáfora à relação da fotógrafa na vida real com os seus fotografados, uma intimidade antropológica que dava vida ao indivíduo retratado e expunha à sociedade a beleza que carregavam em si.

“uma metáfora de como a fotógrafa se relacionava com os seus objetos fotografados, estabelecendo uma relação de confiança e de aprendizado. Ela não fotografava apenas por fazê-la, todo o fotografado tinha que possuir alguma relação, algum sentido para ser fotografado, não é o belo pelo belo, mas, algo que se possa ler e sentir através do olhar, das expressões, do rosto, da paisagem. Lionel é o ato inaugural de Diane, a ponte que ela teve que atravessar para poder sair da normalidade que era a sua vida, “sua experiência interior”, é tanto que ela somente o fotografou no final do filme quando havia atravessado a ponte do tradicional e convencional, permitindo outra escrita de si sensível á percepção do belo no diferente. (..) A relação de confiança que aos poucos Lionel adquire com Diane apregoa a intensidade que fora a mudança da identidade de Arbus, quando os sujeitos não são predizíveis, ou melhor, como Diane Arbus deixou-se no corpo do filme escrever-se, compondo-se de várias , que não unificou-se, entretanto assegurou como uma pessoa subjetiva, uma pessoa mutável, sensível e desejável, que mesmo tentando ser lida por sua mãe, seu esposo, estas pessoas não conseguiram compreender o sujeito que Diane foi se mostrando. Lionel tem esse dever de fazer com que Diane assuma essa fluidez identitária que tanto estava presente no seu “eu”, que a fez perceber que os sistemas de significação se multiplicam e nos deparamos constantemente com inúmeras identidades possíveis” (Leal e Brandão, p. 5 e p. 8).


Leal e Brandão afirmam que

“O diretor do filme Steven Shainberg não quis partir para a realização de uma biografia realística da fotógrafa Dianne Arbus, ao contrário presenciou enveredar em construir o que seria esta experiência interior de Arbus que a fez deixar sua família a ocupar-se em fotografar o outro lado da vida. O titulo do filme afirma essa pretensão de não expressar a realidade, todavia optou por apresentar uma imaginária relação de Diane com o mundo. A palavra retrato designa uma pintura fotográfica, uma representação artística, a figura de uma pessoa que será focalizada estaticamente por alguns segundos como um relógio que para de correr com seus ponteiros ao comando do flash da máquina fotográfica. E grande parte da produção fotográfica de Diane é composta por retratos de pessoas, com uma ressalva, interessava-se por pessoas que estavam fora daquilo que nomeamos como normalidade, buscando em suas poses a excentricidade, uma beleza que não é exatamente o belo dito como harmonioso para a sociedade, gerindo uma representação artística de uma retratista que ganhou crédito por apresentar um trabalho singular, anormal para sua época. E a palavra imaginário denota a ideia do fato do filme não ser uma adaptação realista. Se expressa por personagens fictícios, que arquiteta situações que estão além da realidade, para expressar o que tenha sido a “maior experiência de Arbus” (p.8).

Segundo Daniela Szwertszarf em seu artigo intitulado Anormais na obra fotográfica de Diane Arbus

“No final do século XIX, o monstro era a alteridade radical. Nos anos 1960, o monstro é entendido como uma construção cultural. Portanto, a monstruosidade reside no olhar de quem olha, e não no corpo de quem é olhado. O outro reside dentro de cada um. A partir daí, Diane Arbus vai poder trabalhar uma nova visão sobre a deformidade física, a excentricidade e a diferença. Seu método para alcançar esse propósito é bastante rigoroso, incluindo pesquisas, marcações prévias de encontros e, principalmente, a construção de uma relação consistente com o  sujeito a ser fotografado. Essa é a principal característica da forma de Arbus  fotografar: o seu envolvimento com o tema” (p. 36).

Daniela Szwertszarf acrescenta que

“Diane Arbus estava largamente inserida no contexto de sua época. Nos anos 1960, o freak passa a ser associado a qualquer comportamento que se desvie da norma. No entanto, o sentimento de compaixão para com os anormais esmaecia. Assim que a presença dele se torna concreta, surge o incômodo. Para alcançar um novo olhar sobre as diferenças e excentricidades, Arbus busca um envolvimento com o fotografado. Diane estabelece uma cumplicidade única, que transparece nas suas fotos através da humanidade que é atribuída a cada diferença. A exaltação da singularidade do ser é a marca registrada do seu trabalho” (p. 44).

Cibelle Jovem Leal e Ivone Agra Brandão explicitam que

“a cena inicial do filme sintetiza o que encontraremos pela frente, uma mulher que se desloca da sua vida normal dentro dos padrões convencionais da domesticidade feminina e que começa a migrar por outros caminhos guiados pelas suas sensações de beleza e admiração para com o diferente, o “estranho”, o excêntrico, se deixando perpassar por tantas identidades que vão se costurando em seu ser” (...) Como um ônibus que percorre cotidianamente tantos caminhos e transporta tantos passageiros sempre traz algo inovador, assim, são as nossas vidas e a de Diane em seu “retrato imaginário” cinematográfico. Lionel é, portanto, a chave que liga o ônibus que caminha com Diane em seus novos percursos. E é justamente em um ônibus em meio ao movimento que a fotógrafa traz à tona suas reminiscências, fragmentos de suas histórias, suas experiências, afetações, iniciando a trama com a possibilidade do deslocamento, da desterritorialização, da mutabilidade, da desnaturalização e da diferença. Assim, não seria precipitado dizer que o desejo do filme está em pensar a diversidade, a pluralidade e a multiplicidade ofertada pela vida, baseando-se em quem vivenciou de uma forma profunda as suas sensibilidades e as transformou em arte, Diane Arbus. (p. 2)

“Como foi supracitado, o filme tem início com Diane dentro de um ônibus em movimento anotando nomes, selecionando pessoas com identidades que majoritariamente são consideradas estranhas, entre elas: gigantes, gêmeos, anões, finalizando com o termo albino. O transporte chega a seu destino e a fotógrafa vai a um campo de nudismo, onde se demonstrou de certa forma ainda um pouco impactada, mas logo aceita se despir e então, uma viagem acerca dos fragmentos de sua vida será feita mostrando o nu do tradicionalismo de uma vida monótona e rotineira que irá se vestir em uma nova trajetória de sua história”. (Leal e Brandão, p. 4)

Ou seja, o nudismo que começa e termina o enredo simboliza as amarras que prendiam Diane, muito mais profundas do que roupas, era prender o ser livre e com visão apurada que era; empacotar sua criatividade e sensibilidade.

“No decorrer do filme, percebemos várias vezes como a personagem principal se re-escreve no enredo, até mesmo para romper com a estigmatização que tanto recebera de seus familiares que a consideravam excêntrica em sua busca artística de viver a alteridade. Através dos flashes das câmeras a protagonista consegue fazer uma leitura de si, analisando-se como uma pessoa inconformada com o ambiente que habita, e com suas práticas desenvolvidas no cotidiano como uma simples assistente de seu marido, o desejo ardente de Diane Arbus era mostrar ao mundo a beleza da variabilidade que ele possui”. (Leal e Brandão, p. 3).

“Essa movimentação de Diane a permitiu sair de um território para encontrar outro, assim, o ônibus em expressão metafórica conduz o movimento do deslocamento do ser, da alma que faz Diane “sair da perfeição de uma vida no lar, ao lado do esposo e filhas, e ir à busca do inesperado, do novo, das imagens, do que causa curiosidade e espanto aos olhos de quem o vê”. Ela transgrediu os limites e as vendas que colocaram em seus olhos pela sua fascinação por um mundo cheio de imagens, simbolismos, sentidos e encantamentos que pulsavam em seu interior a ponto de se apaixonar por um homem misterioso que vivia no subterrâneo da sociedade, escondido dos olhares depreciativos das pessoas por causa da doença que cobria toda a sua pele” (Leal e Brandão, p. 5).

De acordo com Courtine citado por Daniela Szwertszarf (p. 38)

“a obra de Arbus é fundamental pelo fato de ela não recalcar o olhar que se dirige à deformidade. Diane Arbus não retira de cada corpo a sua singularidade. Sua obra traz o choque perceptivo (por isso,  tanto incômodo), mas a fotógrafa “restitui a humanidade da pessoa: o  equivalente, fora de dúvida, daquilo que Goffman denominava aceitação”  (COURTINE, op. cit., p. 337).

“O processo de subjetivação vivenciado pela fotógrafa é um movimento singular que a torna independente na produção de si mesma na busca pelo prazer que é fotografar os diferentes focos e movimentos da vida. Olhar para as experiências de Diane é perceber o prazer que alimenta o seu desejo de artista fotógrafa que dá voz e imagem aos silenciados e imersos no subterrâneo social, é um olhar sobre si mesma e se perceber como sendo mais uma que constitui a multiplicidade do mundo juntamente com as outras pessoas, é se perceber parte integrante de todo o colorido e defender isso acima de tudo pautada na sua ética e arte de existência particular. Assim, desejo e prazer envolvem a vida de Diane e a caminha para uma prática de si ou uma constituição moral de si operada pela sua visão de mundo e admiração pelo diferente (Leal e Brandão, p.10)

“O filme assim contribui para reflexão de que existe essa necessidade de rever a noção que criamos do “outro”, não referindo-se apenas a dimensão dada ao respeito pelo diferente, mas sua aceitação sem o limite do aparente, entendendo que “eu” também sou o “outro” (Leal e Brandão, p. 12).

“Fotografar o que a sociedade considera como grotesco é ter em mente que o mundo está repleto de uma diversidade” (Leal e Brandão, p. 9), e Arbus tinha essa sensibilidade, de escancarar em nossa cara o especial, mostrar-nos que o mundo vai muito além do que vivemos em nosso mundinho, do que vemos com nossa visão limitada.



Portanto, Diane nos permite entender que o mundo é feito pelas diferenças e estas mantêm a sua beleza, a sua grandeza e a sua riqueza de sentidos” (Leal e Brandão, p. 12).

Diane Arbus foi, com certeza, uma das maiores fotógrafas de seu tempo, que transpôs fronteiras e mostrou que não existem barreiras entre o belo e o feio, são uma coisa só: há o belo no feio e o feio no belo, e suas fotografias comprovam isso. São belas, atemporais e refletem o que é o ser humano e o mundo.


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